Dica de Livro

Crime e Castigo
1866
Escritor: Fiódor Dostoiévski




(AVISO: CONTÉM SPOILERS)

"Crime e Castigo" é um clássico da literatura. Ponto!

Mais?

Sua narrativa é uma das mais fascinantes estórias já contadas em livro.

Insatisfeitos?

Então, vamos detalhar um pouco mais.

Antes de tudo, é bom colocar a questão de que, aqui, é impossível dissociar autor e obra. Intimamente ligados, uma é quase a autobiografia do outro, pois a própria vida de Dostoiévski (1821-1881) foi repleta de percalços.

Jovem revolucionário no período pré-comunista na Rússia, quase morreu fuzilado aos 28 anos, acusado de crime político, mas, de última hora, já com os fuzis apontados para a sua cabeça, teve a sentença anulada. Sentiu como se lhe tivessem permitido uma nova vida, mas ainda amargou vários anos na prisão na Sibéria, com correntes aos pés e trabalhos forçados.


Uma vez de volta à sociedade, vivia em recorrentes penúrias financeiras, além de sofrer do mal da epilepsia. Não raro, tinha fortes ataques, e quando voltava a si, precisava retomar os escritos, o seu principal e muitas vezes insuficiente ganha-pão. Some-se a isso às suas inúmeras angústias, reflexões e embates existenciais a respeito de moralidade, religião, política, latentes em toda a sua grandiosa obra. Eis as circunstâncias em que se insere a realização de "Crime e Castigo".

Seu protagonista, Ródion Romanovitch Raskolnikóv, vive em intensa perturbação moral. Jovem estudante, morando sozinho em Petersburgo, tendo deixado a família (a mãe e uma irmã) para trás, passa muitas necessidades financeiras; algumas vezes, até fome. Perambulando pelas ruas, porém, também encontra uma vasta multidão de miseráveis, cada qual com seus problemas, cada qual com suas inquietações. Sente, então, a necessidade de dar uma guinada em sua vida. Mas, para isso, precisará por em prática certas teorias que andara formulando.

Até que ponto a vida de uma única pessoa, insignificante e que só faz mal aos outros, pode ter importância diante de tantas tragédias ocorridas diariamente? Com o aprofundamento dessa visão, Raskolnikóv decide matar uma senhora, uma velha usurária de modos insuportáveis, e lhe roubar o dinheiro.

As consequências deste ato, no entanto, vão muito além do que ele planejava. Sim, o assassinato ocorre, e ele consegue escapar. Mas, pouco ou nada leva disto, e o que consegue roubar, esconde. Atormentado pelo ato, acaba adoecendo e cada vez mais, ao longo da narrativa, lhe aterroriza pensar que, a qualquer momento, poderá ser descoberto e preso. A ponto de começar a pensar em se entregar.

Dostoiévski comanda a estória com uma maestria inigualável. Quem lê, facilmente se deixa levar pela estória e também pelas aflições de cada um dos personagens. Um domínio narrativo soberbo. Mas, todo o diferencial está nos rumos que o autor dá aos personagens. Cada um deles representa as perspectivas do autor sobre a condição humana, seja a inocência do amigo de Raskolnikóv, Razumíkin, seja a ânsia por poder do Piotr Pietrovitch.


Marmieládov, por exemplo, é um ex-oficial, totalmente entregue ao vício da bebida, e responsável pelas passagens mais tristes do livro. Seu encontro com Raskolnikóv será providencial, pois é na família dele que o nosso protagonista irá sentir de mais perto a miséria e sofrimento, e não se furtará de ajudá-los, muito mais do que esperavam.

E, em termos de sofrimento é bom avisar que, muitas vezes, esta obra é dura, cruel, mas, tal abordagem é necessária. Dostoiévski consegue nos fazer sentir as lágrimas, as dores no peito de uma tuberculosa, a fome... Acabamos por ser mais do que testemunhas oculares. Respiramos cada sordidez, cada agonia pelas quais os personagens passam. E, ao que me parece, só quem viveu de perto isso (ou na própria carne) pode narrar esses sentimentos de forma tão contundente.

Raskolnikóv não é um herói. Nós saberemos e o próprio assim o sente. Percebe o crime que cometeu e reconhece sua baixeza, sua pusilanimidade. Mesmo assim, sabe que sua teoria estava, até certo ponto, correta. O que é a vida de uma pessoa? Outros matam milhares e são condecorados por isso. Isso fará com que se sinta fracassado por não ter ido além, de não ter continuado a caminhada depois que ultrapassou algumas linhas morais que regem as leis. Sucumbiu à moral que estava nele desde sempre, a despeito de sua teoria.

O personagem de Raskolnikov possui uma firmeza de caráter impressionante, a despeito e a propósito de seu crime, no sentido de se compadecer diante das inúmeras injustiças que presencia. Ajudará, sempre que possível, aos que estão ao seu redor, mesmo que seja tão crítico em relação a esta sociedade, muitas vezes, odiando-a com todas as forças.


A condição humana imersa em contradições, mas calcada na esperança, é o grande mote de "Crime e Castigo". Uma viagem ao submundo da alma humana. De um autor com uma autêntica preocupação com tudo que via (e, que, infelizmente, ainda veria em nossos dias).

Eis aí, pois, o porquê dele ser um clássico. E, dos grandes.


NOTA: 10/10

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