Dica de Documentário

Amy
2015
Direção: Asif Kapadia


O que seria da arte sem o sangramento da alma? E, o que seria do jazz sem as divas que expõem esses sangramentos de forma honesta? De Ella Fitzgerald a Billie Holliday, não existiu nenhuma em que dores profundas não fizessem parte do DNA de sua música. E, por isso mesmo, tornaram-se imortais, compartilhando seus demônios particulares para um público estupefato. Mas, como alguém pode sofrer tanto e ainda fazer uma bela arte? Talvez, ambas as coisas sejam indissociáveis.

É justamente sob essa perspectiva que acabamos olhando para Amy Winehouse, um dos mais incríveis e tempestuosos talentos a surgirem nos últimos anos no universo musical. Sim, ela tinha uma voz de outro mundo. Sim, ela cometeu erros na vida pessoal. Sim, ela se envolveu com drogas. Sim, o amor romântico foi uma das coisas que a destruiu. Sim, público e imprensa, como urubus da desgraça alheia, adoravam isso. E, sim, Amy não está mais entre nós.




O documentário pouco revela sobre a infância da cantora. Logo de início, ela nos coloca no meio de imagens de Amy já crescida, prestes a começar sua carreira. Essa maneira de começar a produção é interessante, pois torna o espectador muito íntimo das situações, principalmente, pelo fatos de que as gravações foram feitas por amigos dela. De forma muito descontraída, somos levados a quase partilhar cada momento, cada expectativa, cada degrau que Amy passou.

Só em poucas sequências, vemos imagens de sua infância. Mas, é proposital. Porque é nesse período que seus pais se separam, o que vai ser primordial para moldar a personalidade da cantora e entendermos o porque dela ter emergido numa espiral de auto-destruição futuramente. Inclusive, o pai dela, Mitch, não é pintado com as melhores cores. Depois, que ela começa a fazer sucesso, fica claro que ele se aproveitou da situação para fatura em cima disso. Amy, por sua vez, por sentir falta dele, tinha-o quase como um herói, o que torna a situação mais revoltante, vista de longe.




Claro que a relação de vida e morte com o amor da sua vida, Blake, também é abordado, e também não é um personagem bem desenhado na produção. Em determinado instante, fica a impressão de que ele não queria que Amy se curasse de seu vício em drogas, para que ambos afundassem juntos nessa jornada. Como sabemos agora, Blake continua vivo e se recuperou de seus vícios.

Esses fatos abordados no filme mostram muito bem que o problema de Amy não era, senão, quem a rodeava. Todos, de alguma forma, sem se preocuparem com as necessidades dela, ou não se importando que ela continuasse a se dopar, ou exigindo que ela fizesse cada vez mais shows e discos, e, obviamente, faturasse milhões. A mídia, carniceira como só ela é capaz, fez o resto para, a bem da verdade, matar Amy aos poucos.

Mas, mesmo esperando um desfecho conhecido (e triste) no documentário, ele também revela o quão excepcional artista Amy era. Não somente dona de uma voz impecável, mas, de extremo bom gosto nas próprias composições que fazia e na sonoridade que queria para as suas canções. E, talento esse mostrado desde cedo. Musicalmente, uma pessoa experiente e madura num corpo jovem. E, as letras que escrevia, evidentemente, carregadas de uma aura passional que só o jazz é capaz de traduzir.




Mas, em sua trajetória artística, a cantora foi acumulando desilusões, decepções e revoltas contra tudo e contra todos (e com razão). Houveram momentos em que ela poderia ter sido tratada (e salva). Mas, aí não teria feito "Back to Black", junto com o enorme sucesso do disco. Sucesso que a engoliu. O sucesso dos flashes invasivos que roubam sua alma, sua identidade, sua vida, enfim. Todos em volta de Amy a mataram, de alguma maneira.

Sem pudor de causar polêmica (o que, de fato, ocorreu com os familiares, que execraram o documentário), "Amy" é um registro precioso, não somente de uma grande e verdadeira diva moderna do jazz, mas também de como as pessoas podem ser cruéis e insensíveis com alguém que, em determinado instante da vida, queria apenas ter paz (e, fazer música, se possível). Poderosa a junção desses elementos. E, indignação para com essas pessoas.

Perdoe-as, Amy!


NOTA: 9/10

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