Dica de Filme

A Última Tentação de Cristo
1988
Direção: Martin Scorsese


O CRISTO FEITO HUMANO PELAS MÃOS DE KAZANTZAKIS E SCORSESE

"A dualidade de Cristo - o desejo, tão humano, tão super-humano de alcançar Deus - foi sempre um impenetrável mistério para mim. Minha maior ansiedade e fonte de toda alegria e angústia, desde minha juventude, tem sido o incessante, impiedoso conflito entre o espírito e a carne... e a minha alma é a arena onde essas duas armadas se combatem e se encontram."
(Nikos Kazantzakis, no livro "A Última Tentação de Cristo")

"Este filme não se baseia no Evangelho, mas, numa exploração imaginária do eterno conflito espiritual."

Voluntariamente ou não, são esses dois "avisos" que vão determinar o cerne do filme "A Última Tentação de Cristo", baseado livremente na obra do escritor grego Nikos Kazantzakis. Primeiro, porque á isso o que vamos encontrar mais durante a produção: o conflito do homem com o espírito, as dúvidas e angústias de um Cristo mais humano do que muitos cristãos gostariam que tivesse sido, Já, o segundo adendo deixa claro que o filme está longe de ser uma adaptação bíblica, dessas para serem exibidas em especiais de Páscoa na TV. Em muitos momentos, ele é cru, brutal, e, acima de tudo, contestador. E, essa contestação rendeu enorme polêmica à época, com o filme sendo proibido na Turquia, no México, no Chile e na Argentina. A censura e os ataques À obra chegaram a tal ponto que, em 22 de outubro de 1988, um grupo fundamentalista cristão francês lançou coquetéis molotov no interior do teatro parisiense Saint Michel, enquanto ele estava mostrando o filme, deixando treze pessoas gravemente feridas. Passados 29 anos, porém, percebe-se que a "A Última Tentação de Cristo", ao contrário de ser uma agressão ao Cristianismo, mostra, na verdade, uma interessante reflexão sobre a fé.




E, toda essa polêmica era, de certo modo, esperada, já que Kazantzakis sempre foi um escritor de cunho provocativo (vide "Zorba, o Grego"), e Scorsese, no cinema, também sempre fez obras inquietantes ("Taxi Driver" e "O Rei da Comédia" que o digam). O que muitos, por preconceito ou por uma falta de esforço, não enxerguem é que, talvez, "A Última Tentação de Cristo" seja um dos filmes mais genuinamente cristãos que existem, pois, ao expôr conflitos internos de Jesus, este se aproxima mais das pessoas, entendendo melhor seus anseios, suas angústias e seus sofrimentos, podemos, assim, passar seus ensinamentos da forma mais honesta possível. Tanto é que, a todo momento, vemos um Jesus hesitante, com medo de tudo. O mesmo afirma que só não tem medo da morte, mas, até isso é questionável, como demonstra o ato final do filme. 

Já, o que, de fato, não ficou de bom tom, foi a representação de Maria Madalena, antes sempre sendo retratada como uma mulher forte, de fibra, e aqui sendo mostrada como uma mulher imatura, que, na maioria das vezes, só serve na trama para provocar os desejos mais libidinosos em Cristo. O que é um desperdício, pois, o foco de Madalena na vida de Jesus poderia ter sido melhor explorado, além desse aspecto, mostrando, por exemplo, como ela enxergava a filosofia de vida de Cristo, e este, a dela, num confronto mais bem elabora, que, com certeza, poderia render ótimos diálogos. Infelizmente, a figura dela no filme só é empreendida, na maioria das vezes, como a representação dos desejos mais íntimos de Cristo, que, em alguns momentos, demonstra mais piedade por ela, do que um amor mais carnal, propriamente dito.




Outro aspecto que ficou um puco fora do tom foi a representação um tanto pop de Cristo, que, às vezes, resvala e chega bem perto do histrionismo. Obviamente, esse ponto pode ser classificado como uma crítica aos líderes religiosos atuais, que usam do histrionismo nas suas pregações, convencendo, assim, uma multidão das coisas mais absurdas. Mas, no ritmo do filme, esse aspecto ficou um pouco caricato, passível de ser melhorado com pequenos ajustes. Mesmo assim, acaba sendo tremendamente incômodo o fato da crítica embutida na obra ser mais atual do que nunca, colocando o dedo na ferida de coisas como a mercantilização da fé, o uso da violência para conseguir os seus objetivos e o poder político que emana dos poderosos conseguir adestrar o povo de maneira terrivelmente eficaz. Provavelmente, é esse o real aspecto polêmico do filme, mais do que sua visão de um Cristo humanizado, é a sua alegoria social, misturada com religião, que com certeza, incomodou plateias inteiras mundo afora (muitas, inclusive, que nunca chegaram a assistir o filme de fato!).

Em termos de personagens, se há algo de muito positivo na obra, é, sem dúvida, a representação bastante diferenciada daquele que é considerado o maior violão dos cristãos: Judas Iscariotes. No filme, temos a nítida impressão de que Judas foi o mais fiel discípulo de Jesus, por causa de uma aspecto simples: se estava nos desígnios de Deus entregar seu único filho em sacrifício pelos pecados dos humanos, coube ao discípulo mais próximo de Cristo a terrível tarefa de trair o seu mestre para que os planos desse Deus fossem devidamente cumpridos. E, na produção, essa relação de dor e sofrimento entre ambos os amigos é feita de maneira muito bonita e convincente, dando até uma interpretação inusitada (e, trágica) da figura de Judas, algo de, decerto, também desagradou a comunidade cristã em todos os seus níveis. Afinal, é justamente nas conversas entre Iscariotes e Cristo que o filme revela os seus diálogos mais sinceros, mais complexos, mais reflexivos. Algo que, pra alguns, faz até repensar as suas crenças, o que, obviamente, é "perigoso" e até "subversivo".





Como cinema, no entanto, "A Última Tentação de Cristo" peca em alguns aspectos. A direção de Scorsese, por exemplo, parece não estar habituada nem ao tema, nem ao ritmo bem mais lento da narrativa, o que deixa, às vezes, o filme um pouco cansativo, alongando-se além do necessário. Nas ínfimas vezes em que a câmera do diretor fica mais dinâmica, o tom, no entanto, não encaixa no clima mais reflexivo que o texto propõe. O roteiro de Paul Schrader, usual parceiro de Scorsese, também poderia ser mais enxuto, principalmente, nos momentos do batismo de Cristo e na sua estadia no deserto, mas, acerta em cheio nos momentos finais, e que fazem jus ao título do longa. Como ponto muito positivo para a produção, porém, destaque para as atuações, principalmente, as de William Dafoe como um atormentado Cristo, e Harvey Keitel, como um tragicamente humano Judas, talvez, graças à interpretação do ator, o melhor personagem do filme, provocativamente falando.

É verdade que "A Última Tentação de Cristo" está longe de figurar entre os melhores de Scorsese, mas, dentro da limitações, e, ainda por cima, com um tema tão controverso, e que, ainda hoje, não agrada a uma grande parcela dos que se dizem religiosos, o filme também tem muitas qualidades, entre elas, induzir um debate sobre fé, e, acima de tudo, sobre a condução humana, e suas discrepâncias. Assuntos, claro, fora das conversas comuns sobre religião, mais preocupadas em impôr uma crença ou uma fé cega, do que em entender o porquê de certos acontecimentos da vida. E, este filme, mesmo que de uma maneira não tão aprofundada, propõe essa reflexão. Porém, ao que tudo indica, com produções religiosas do naipe de "Deus Não Está Morto" fazendo um enorme sucesso por aí, não é surpresa nenhuma que "A Última Tentação de Cristo" continue a ser incompreendido; demasiadamente incompreendido.


NOTA: 8/10


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