Dica de filme ("O Lixo e o Sonho")

 Dica de Filme


Título: O Lixo e o Sonho
Ano de lançamento: 1999
Direção: Lynne Ramsay


A infância perdida em meio ao lixo da vida

Glasgow. Escócia. 1973. Greve de lixeiros. Maior parte da cidade imersa na podridão. Adultos de um lado tentando sobreviver como podem. Do outro, crianças com dilemas e revoltas que não conseguem entendem. O que resta muitas vezes é a desesperança. Por isso, vivem brigando. Abusam uns dos outros (inclusive, sexualmente). Chafurdam no lixo. E algumas morrem. 

Esse é o panorama de "O Lixo e o Sonho", filme de estreia da diretora Lynne Ramsay (de "Precisamos Falar sobre Kevin"). Interessante que de certa forma ele dialoga com outras produções barra pesada dos anos 90 que abordaram a infância e a pré-adolescência de maneira cruel, cínica e pessimista, como "Kids", Gummo" e "Nó na Garganta". É por isso mesmo que aqui Ramsay não tem concessões. Mostra cenas (muito) incômodas. Mas, nenhuma gratuita, apelativa ou sádica. 

Se o nosso estômago revira e sentimos uma genuína revolta, é porque a situação, como muitos sabem, na vida real pode ser pior. E vendo isso sendo passado por crianças é bastante doloroso. Mas, como mencionado antes, a cineasta não está preocupada aqui do choque pelo choque. Sua intenção é cutucar feridas abertas, e se possível, achar alguma leveza ou lirismo em meio à podridão, à brutalidade, à volta de esperança. 




"O Lixo e o Sonho" também é prodigioso ao economizar nos diálogos. Não há muitos, mas, os poucos que têm ora expõe a inocência perdida daquelas pessoas, ora mostra a rispidez com que tratam uns aos outros. Mas, a grande força do filme está mesmo nas imagens. Ramsay consegue unir poesia e asco em uma mesma cena, e através de metáforas muito bem colocadas denuncia a situação de miséria de pessoas comuns abandonadas à própria sorte. 

Em uma sequência, por exemplo, várias crianças brincam no meio de amontoados de lixo, em meio aos ratos. Parafraseando Manoel Bandeira, aqui já não se sabe mais quem é bicho e quem é ser humano. Parecem todos coabitar em um mesmo espaço, onde não há senão a decadência. Porém, há momentos interessantes de devaneio em "O Lixo e o Sonho", como na cena em que um ratinho voa até a Lua. É a forma da diretora entregar algum aleto diante do que estamos vendo. 

Ao mesmo tempo, as crianças, assim como na obra "O Senhor das Moscas", em algum momento, mostram um lado mais primal e perverso. Como que para contrabalancear a própria perversidade da situação em que vivem. Mas, nem por isso, deixam de ser crianças, já que em alguns momentos elas falam e se comportam com muita ingenuidade. Porém, ainda assim, aquela Glasgow, naquele momento, não é lugar para crianças. 




A maneira de filmar de Lynne Ramsay é um caso à parte. Em alguns momentos, as imagens são cruas e documentais, mas, em outras, a câmera passeia por planos milimetricamente enquadrados, o que também dá uma visão um tanto lírica de algumas situações, como a do menino que foi visitar um bairro abandonado e se vê no meio de uma plantação, como num sonho (uma sequência que conversará muito no final da produção). 

Além disso, os atores mandam muito bem em suas representações, sejam as crianças, ou os adultos, ainda mais porque há algumas cenas aqui bem difíceis de fazer. Porém, todos mostram um belo esforço, e tornam aqueles personagens ali plausíveis aos nossos olhos, em um retrato deteriorado de uma cidade que, por causa de inúmeros problemas (culminando em uma greve de lixeiros), expõe todo o mal guardado até então. 




"O Lixo e o Sonho" é um filme irretocável. Mas, perturbador e difícil de ver em certos momentos. É também a prova de que Lynne Ramsay continua sendo uma das melhores diretoras surgidas nos últimos 20 anos, sempre escolhendo a dedo os seus temas, e não tendo concessões em expor qualquer tipo de mazela, seja a miséria que desumaniza crianças, seja a maldade mostrada sob outros ângulos em petados como "Precisamos Falar sobre Kevin" e "Você Nunca Esteve Realmente Aqui".  

"O Lixo e o Sonho", portanto, não poderia ter sido uma estreia mais arrebatadora da cineasta. 


Nota: 10/10


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