DEBATE CULTURAL (E, SOCIAL TAMBÉM, POR QUE NÃO?)

TROPA DE ELITE: ENTRE A VALIDADE DA CRÍTICA E O QUE O PÚBLICO QUIS ENXERGAR


Entre 2007 e 2010, o cinema brasileiro pariu um fenômeno de enormes proporções, que até hoje gera polêmicas. Claro que me refiro aos filmes "Tropa de Elite" 1 e 2. No caso do primeiro, a celeuma inicial foi devido à questão da pirataria, já que o filme estava "à venda" muito antes de sua estréia oficial. Passado isso, o negócio foi discutir a produção em si, algo que se tornou monstruoso com sua sequência, três anos depois.

Mas, por que "Tropa de Elite" suscita tantos ódios e paixões? A resposta, é bem provável, encontra-se na sociedade em que vivemos. A bem da verdade, nunca fomos muito conscientes no âmbito social e político. Sempre pegamos aquela opinião que parece ser a mais fácil, e nisso, a saga de Capitão Nascimento foi um prato cheio.


Primeiro, passamos a ter um "herói nacional" moderno, aos moldes daqueles que nos contam os livros de História. Com suas frases de efeito, e seu "carisma", Capitão Nascimento foi canalizador e válvula de escape do pensamento de uma parcela considerável da população. O problema é que o personagem, em si, chegar a ser bem simplório, e (pior) se utiliza de métodos pra lá de questionáveis.

Coloquemos os pingos nos "i"s. O personagem máximo do ator Wagner Moura não passa de um torturador. Simples. Não o torturador que está no poder, mas aquele que sempre faz o trabalho sujo. E, a questão é que o personagem parece sempre se divertir com isso. Seja por algum problema psicológico devido ao stress no trabalho ou um sadismo em estado puro, ele diz "gracinhas" aos montes toda vez que executa alguém. E, o público, em uníssono, aplaude.

Como esquecer cenas como a que ele tortura uma mulher com um saco plástico e, antes de mandar executá-la, fala cinicamente: "Bota na conta do Papa"? E, outra em que ele ameaça enfiar um cabo de vassoura no ânus de um rapaz?

Muitos, talvez, bradem: "Mas, eram marginais, protegendo traficantes!" Só que aí é que ocorre a distorção: os moradores que "protegem" o traficante na favela o fazem porque querem ou pelo medo? Caso se recusem, quem irá protegê-los? Policiais, como Capitão Nascimento? Pois, é. Não é um julgamento tão fácil assim.


E, é bom lembrar que o próprio personagem não é uma pessoa saudável. No primeiro filme, isso fica bem claro quando ele sofre de convulsões nervosas devido ao trabalho. No máximo, Capitão Nascimento poderia ser considerado um braço armado do Estado que está cansado, exausto. Herói? Convenhamos: um perfeito exagero.

No entanto, será que os responsáveis pelos filmes (José Padilha e cia) não sabiam com que público estavam lidando? Com certeza, sim, mas que fique claro que não quero insinuar em tolher o trabalho artístico de ninguém. Qualquer forma de censura deve ser rejeitada. Mas, a arte não pode ser unânime, e, quando preciso, tem que ser criticada.


Nos dois "Tropas de Elite", seus realizadores talvez até quisessem fazer uma critica mais severa à sociedade, mas qualquer análise foi facilmente diluída pelos alívios cômicos e pelas frases de efeito. Em inúmeras cenas, ambos os filmes parecem que vão debater questões a sério, quando de repente... Vem uma piada. O público ri, e, consequentemente, deixa de refletir.

O caso mais claro é do personagem Fortunato, apresentador de programas policias, e que, depois, vira político. Presente no segundo filme, ele é interpretado por André Mattos, um ator bastante conhecido de comédias. O problema reside na construção desse papel. Fortunato é um personagem caricato demais. Não existe ironia em suas ações. O intuito pareceu mais fazer comédia. Ou seja, quem assistiu "Tropa de Elite 2" vai continuar vendo esse tipo de programa e de apresentador com os mesmos olhos.


Como essas, existem muitas e muitas outras cenas rasas. Só pra ilustrar mais, no primeiro filme, o personagem Matias está numa sala de aula, discutindo com outros alunos sobre as teorias do filósofo Michel Foucault. O debate até que ia bem, até que Matias diz meia dúzia de palavras, que não resumem bem o acontece, mas que já são o suficiente para calar toda a turma. Quem nada conhece da obra de Foucault, poderá ter certa repulsa ao filósofo após assistir essa cena.


Além disso, as ideias que os filmes passam não se sustentar bem, pois, a todo momento, Capitão Nascimento explica, passo a passo, cada sequência (sob sua lógica, claro). Com isso, o espectador pouco tem liberdade para escolher o que pensar, pois já está tudo "mastigado", e sob uma ótica que é apenas um dos pontos. Nisso, temos uma bipolaridade que ajuda pouco a entender o problema; é sempre com a simplicidade do bem versus o mal.

No segundo filme, os personagens até amadurecem um pouco, e passam a entender, minimamente, como as coisas são feitas no Brasil, principalmente, em relação a interesses políticos. Só que, três anos antes, o público já tinha tomado as prerrogativas violentas (e duvidosas) de Capitão Nascimento como necessárias.


Esse público evoluiu junto, nesse intervalo de tempo? Não, visto que, em pleno 2014, boa parcela da população urra de prazer quando um "marginalzinho" é preso num poste. Pouco ligam se essa cultura do linchamento tenha provocado, meses depois, a morte de uma inocente.


As milícias, "denunciadas" no segundo filme? 
Continuam a todo vapor e aprovadas pela sociedade. 

A violência policial? 
Nunca matou tanto, como nos últimos anos. 

A vida do policial, em si, melhorou? 
Basta perguntar a qualquer um as dificuldades que enfrentam no serviço. 

O tráfico de drogas? 
Nunca esteve tão forte. 

Os programas policiais na TV? 
Altíssima audiência. 

O público que teve orgasmos ao ver Capitão Nascimento espancando um deputado? 
Continua a votar nos mesmos corruptos de sempre.


Por fim: os dois "Tropas de Elite" foram feitos para mudar toda essa realidade? Óbvio que não. Mas, então, que o discurso seja mais claro (e honesto): não se tratam de produções para debater nossa atual sociedade, devido às suas rasteiras conclusões, mas sim, dois ótimos filmes de ação, com atuações estupendas e uma técnica fantástica. Ponto. Nada mais. Exigir além é limitar algo que já nasceu limitado.

"Tropa de Elite" precisa ser considerado o nosso "Rambo": divertido, empolgante, mas não um modelo de como devemos agir, na vida real, em relação à violência policial, ao tráfico de drogas ou à política.

Para isso, existem outros filmes bem mais eficazes.


ERICK SILVA

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