Dica de Livro

O Remorso de Baltazar Serapião
2006
Autor: Valter Hugo Mãe


A ignorância cotidiana. A estupidez. A violência contra a mulher. O embrutecimento. Nossa realidade é o palco de inúmeras desgraças e uma medíocre humanidade que se recusa a se importar com isso. Mas, existem os inquietos, os perturbados, os inconformados.

O escritor Valter Hugo Mãe pode, muito bem, encaixar-se nesse perfil, mesmo que, sob certa ótica a literatura que iremos encontrar em "Baltazar Serapião" seja chocante, muito chocante. De início, o que mais salta aos olhos é a forma como a figura feminina é tratada.

Num ambiente onde superstições religiosas e toda a sorte de ignorância reinam, as mulheres são colocadas como figuras estúpidas, que precisam ficar caladas para não contaminarem os homens com seus pensamentos. E, estes, caso se achem enganados por elas, têm total liberdade de aplicarem as mais horríveis violências contra elas.

À primeira vista, apelativo, sim. Mas, a realidade seria menos apelativa? Ao ler as mais fortes partes deste livro, recordei-me do caso daquela moça na Índia, estuprada coletivamente, violentada com uma barra de ferro e depois jogada no meio-fio como um animal imundo.


O pouco que pode ser percebido da figura de Hugo Mãe e de sua obra faz pensar que tal violência aqui presente não se trata de um desdém à figura da mulher, mas uma forma de denúncia. Claro, uma denúncia incômoda, bastante indigesta, mas, não seria ela, de alguma forma, necessária?

Além desse aspecto, a obra expõe uma sociedade de castas, entre senhores e seus vassalos, numa terra miserável, onde a religião tenta ser o único alento, mas que ainda permite coisas como queimar supostas bruxas na fogueira.

E, é nesse ambiente que Baltazar Serapião vive com sua família; uma gente, em todos os aspectos, animalizada. Tanto, que eles possuem uma vaca, a Sarga, que é considerada gente, e que muitos das redondezas acreditam que foi ela que pariu Baltazar e seus irmãos.

Literatura fantástica em essência, o livro mescla muito bem misticismo e realidade. O próprio irmão de Baltazar, após a morte da mãe deles, começa a desenvolver o estranho dom de retratar figuras celestiais em pedra, passando a ser cortejado pelos mais nobres da região com um grande artista.


A promessa de uma vida melhor, porém, não deixa ninguém mais humano, ao contrário. Caso alguém esteja numa classe privilegiada, utiliza seu poder para humilhar os demais. Os mais miseráveis, então, deixam-se levar pela sua condição de bicho (bicho-homem) e cometem atitudes mais desprezíveis ainda.

É bom destacar também o tipo de escrita de Hugo Mãe, com inversões de palavras nas frases, pontuação singular e frases começadas em letras minúsculas, tudo muito bem elaborado e, incrivelmente, fluido. A forma textual é soberba, quase uma nova maneira de usar a língua portuguesa.

Porém, o mais incômodo do livro é, sem dúvida, a sua latente violência. Uma brutalidade injustificada pela miséria, ou por qualquer outra desculpa que pudesse oferecer alguma redenção. E, a passividade de todas as mulheres diante das injustiças que sofrem também pode ser entendida como uma crítica à submissão a que muitas se sujeitam e a nossa crescente indiferença, como um todo.

Muitos, até com certa razão, criticaram a falta de piedade de Hugo Mãe para com os seus personagens. Mas, reflitamos: encontramos menos do que isso na rua, assistindo TV ou lendo um jornal? Não seria um alerta do escritor? Ou a realidade se mostra tão melhor?


Gostaríamos que sim, e que, nesse caso, a arte não imitou a vida; apenas foi "criada", "imaginada". Mas, é com grande pesar, que podemos vislumbrar esta sociedade se embrutecendo a passos largos, tanto quanto Baltazar Serapião e sua desgraçada família.

Leitura dificílima. Uma das melhores da existência de qualquer pessoa. Um livro para, propositadamente, não se esquecer. Talvez Hugo Mãe não precisasse ter ido tão longe.

Ou, provavelmente, nós é quem fomos longe demais.

Cabe escolher.


NOTA: 10/10

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