Dica de Filme

A Pequena Loja da Rua Principal 
1965
Direção: Ján Kadár e Elmar Klos


Nem sempre o que é complexo surte o efeito desejado. Vejam o cinema, por exemplo. Existem filmes e mais filmes que apelam para histórias demasiadamente complicadas para contarem, em essência, algo muito simples, que, com poucos recursos, passa a mensagem de maneira devida. Sejamos mais específicos ainda: produções que retratam a Segunda Grande Guerra, com enfoque na perseguição aos judeus, parecem ser todas iguais, correto? Porém, um filme, em especial, não só colocou o cinema da Tchecoslováquia na mapa mundial, como também se tornou, até hoje, um dos longas mais peculiares a respeito do Holocausto. Trata-se de "A Pequena Loja da Rua Principal".

O enredo é simples, mas, muito bem desenvolvido, contando a história de Tono, um carpinteiro que vive uma vida simples, sem muitas ambições, e se comportando de uma maneira boa e até ingênua com as outras pessoas. Nesse ciclo de pessoas que o manipulam e até o humilham, está sua esposa, Evelína, esta sim, bastante ambiciosa, e o seu cunhado, Markus, comandante do exército fascista da região, e que tem grande influência na lata sociedade do local. Ambos fazem questão de, sempre que podem, colocar Tono no seu "devido lugar" de subalterno. É quando, devido à desapropriação de estabelecimentos judeus na cidade, Markus oferece a Tono a chance de ser proprietário de uma loja de botões pertencente a uma humilde senhora judia.




O filme não perde tempo com o que é desnecessário, mostrando, claramente, como o tratamento a Tono por seus conhecidos muda da água para o vinho quando ele passa a ser proprietário da loja da senhora. Pessoas assim eram chamadas de "arianizadoras", ou seja, pessoas da raça ariana que passavam a ser donas das propriedades judias, e a produção dá bem a entender que gente assim era bastante respeitada. Sua esposa, por exemplo, começa a tratá-lo melhor do que antes, fazendo até mesmo planos para o futuro, por achar que a senhora dona da loja é rica e Tono pode se aproveitar disso. Este, por sua vez, sente-se incomodado, pois, mesmo sem ter conhecimento da real perseguição aos judeus, sabe que seu cunhado não passa de uma crápula, ao mesmo tempo que ridiculariza as autoridades fascistas, chegando ao ponto de imitar Hitler quando está bêbado.

Na trama, a perseguição aos judeus, por sinal, vai sendo mostrada aos poucos, gradativamente, com tempo tanto para o protagonista do filme, quanto para o espectador, entenderem melhor o que se passa. Esses momentos pontuais são tensos e fortes, e vai servindo como um choque de realidade para Tono, já que chega o momento em que todos os judeus da cidade precisam ser deportados, inclusive, a senhora da loja, a quem, de alguma maneira, ele se afeiçoou ao longo do tempo. Passa, então, a viver numa angústia terrível, com receio de escondê-la das autoridades, mas, ao mesmo tempo, sabendo que o destino que a aguarda é horrível. Muito bem ambientados, o seu sofrimento é o nosso sofrimento, e essa sensação beira o insuportável nos trinta minutos finais, o auge do filme, mostrando o conflito entre o egoísmo e o altruísmo, e o grande fardo da consciência, aliada à impotência diante do absurdo.




O roteiro faz críticas bem diretas aos militares, mais pontualmente, à falta de escrúpulos deles e sua incontestável capacidade de soarem ridículos. Não à toa, a construção de uma espécie de "pirâmide" no centro da cidade, com um falso emblema do fascismo, toma boa parte da projeção, expondo toda a megalomania por um poder que não pensa, não raciocina, apenas quer exercer uma autoridade dantesca, baseada em algo absurdo. A hipocrisia de quem passa a tratar Tono como alguém da lata sociedade depois de ser "agraciado" pelo cunhado também é bem latente na história, e mesmo que muitas coisas soem engraçadas e cômicas algumas vezes, a mensagem crítica é passada sem nenhum contratempo. É, mais ou menos, o que Roberto Benigni faria, anos depois, com o primoroso "A Vida é Bela".

Surpreende a qualidade técnica da produção, passando a impressão de que foi filmada uns vinte anos depois de sua realização. A direção a quatro mãos de Ján Kadár e Elmar Klos também é outro destaque, com total domínio narrativo da história, fazendo com que cada cena seja essencial, e que mantenha, ao mesmo tempo, o interesse do espectador pela trama, que mesmo simples, comove bastante. Não há muito o que dizer das atuações, todas impecáveis, com total foco em Jozef Kroner, com o seu tragicamente inocente Tono, e Ida Kamińska, que faz da senhora dona da loja uma personagem interessantíssima. A química entre os dois flui de maneira soberba, até o impactante final do filme, que adquire um tom onírico, belo e triste encerrando magistralmente uma das mais bonitas histórias sobre o Holocausto no cinema.




Merecidamente, "A Pequena Loja da Rua Principal" ganhou o Oscar de Filme Estrangeiro, e, ainda hoje, é considerada uma das melhores produções da época da dita "Primavera de Praga", ocasião  em que a Tchecoslováqui se libertou do domínio da antiga União Soviética. De fato, este filme possui uma forte mensagem em favor da liberdade e contra todo e qualquer autoritarismo. Só que, longe de parecer algo panfletário, ou qualquer outra coisa do tipo, ele se aproveita da particularidade de uma história simples, para, daí, permitir que enxerguemos o mundo com outros olhos, outras possibilidades, e que a gente se ponha (até o fim) contra toda e qualquer arbitrariedade. Mais necessário aos nossos dias, impossível.


NOTA: 9/10


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