Dica de Filme

Ilha do Medo
2010
Direção: Martin Scorsese


OS LIMITES DA SANIDADE NUM THRILLER MAGISTRAL

O que torna a maioria dos filmes de suspense ruins é a repetição quase infinita de fórmulas já bastante conhecidas. Claro, temos ícones do gênero, como os excelentes "O Silêncio dos Inocentes" e "Seven, os Sete Crimes Capitais". No entanto, com exceção do primeiro "Jogos Mortais", quase todos os filmes dos anos 90 pra cá sob a carapuça de thrillers padeceram da síndrome do "susto fácil". Apostou-se demais em climas soturnos, macabros, e se esqueceram de incrementar suas histórias, geralmente, com a mesma estrutura, tendo finais, supostamente, "surpreendentes". Mas, eis que, há alguns anos atrás, surge Scorsese, que sempre parece estar no auge de sua arte, e nos presenteia com um thriller, esse sim, instigante, bem elaborado e cheio de ambiguidade.




O bom é que a história parece relativamente simples, mas, no decorrer da trama, um emaranhado de significados e dúvidas vão surgindo. A princípio, acompanhamos a dupla Edward Daniels e Chuck Aule, investigadores do FBI que chegam ao estranho Shutter Island Ashecliffe Hospital, um misterioso sanatório, localizado numa ilha distante do continente. A função deles ali é descobrirem o que aconteceu com uma das pacientes do hospital, que, aparentemente, fugiu do local, e é considerada perigosa. No desenrolar da investigação, porém, os agentes vão se deparando com atitudes estranhas mão só dos pacientes, mas, também dos enfermeiros que trabalham na instituição, e, em especial, do Dr. John Crawley, coordenador do hospital. Com o tempo, percebe-se que nem tudo é o que parece, e o local vai se transformando num verdadeiro pesadelo, pelo menos aos olhos do agente Edward.

Interessante que, mesmo com a habitual direção dinâmica de Scorsese, nenhuma informação do enredo é dada de mão beijada, e na hora errada. Ao contrário, num minucioso quebra-cabeças, vamos descobrindo coisas relacionadas ao passado de Edward, quais as intenções (ou não) de seu parceiro Chuck, os métodos nada usuais no tratamento dos pacientes do hospitais, entre tantos outros detalhes e surpresas que, REALMENTE, são importantes para a trama, e não apenas adornos sob a desculpa de gerarem suspense. Uma fala, "aparentemente", solta de algum personagem, algum gesto, alguma lembrança, enfim. É um caso incomum no cinema atual no qual cada cena é importante para a compreensão do filme. A única certeza que rege o espectador durante quase todo o longa é que o agente Edward é uma pessoa abalada, devido aos traumas de guerra que sofreu (a história se passa no ano de 1954, após a Segunda Grande Guerra). E, é esse ponto que pode ser determinante (ou não) pra entender tanto a construção do enredo, quanto o seu desfecho.






O roteiro de Laeta Kalogridis (que tem em seu currículo obras como "O Fantasma do Futuro" e "Alexandre") é engenhoso ao captar a essência da história em "A Ilha do Medo": a falta de sanidade, confundindo o que é real com o que é ficção. E, acreditem, esse foco será determinante nos melhores momentos do longa, onde loucura e realidade, às vezes, parecem ser a mesma coisa, precisando os protagonistas (e, nós, por tabela) ficar atentos a cada pequeno detalhe, a cada mínima aresta. Não se trata, vejam bem, de uma história excessivamente confusa e intrincada. Apenas é tão bem amarrada que que nos força a sairmos de nossa zona de conforto, e refletirmos sobre o que estamos assistindo. É um cinema bem cerebral, mas, que, infelizmente, poucos têm a paciência de assistirem na sétima arte atual, que nos empurra constantemente suspense com viradas mirabolantes, mas, que não dão peso algum à história. É a sobreposição do estilo, algo que, definitivamente, não está em "A Ilha do Medo".

Como quase sempre ocorre nos filmes de Scorsese, os atores se empenham bastante aqui. Mark Ruffalo e Ben Kingsley entregam performances muito convincentes de seus personagens, não entregando facilmente as reais intenções deles. Há até uma pequena, mas, significativa participação do grande Max von Sydow, como o Jeremiah Naehring. Mas, o grande mérito interpretativo é mesmo de Leonardo Di Caprio, com o seu misterioso e ambíguo Edward. Ator, sem grande esforço, consegue passar toda a sensação de angústia e de dúvida que o seu personagem pede, sendo frio e calculista nos momentos certos, e entrando em desespero no instante mais oportuno. Uma belíssima interpretação,portanto. Scorsese, como diretor, não perde a mão. Mesmo o filme sendo relativamente longo, não perdemos o interesse pelo o que vai acontecer nas próximas cenas até chegar o seu final. E, mesmo assim, é um desfecho não tão simples assim, o que pode (propositalmente) suscitar uma dupla interpretação do que aconteceu. Trata-se de uma aula de cinema, com total domínio narrativo. Destaque-se também a sensacional fotografia de Robert Richardson, que parece transformar cada ponto da ilha numa coisa viva, parte integrante da história.




Não é à toa que "Ilha do Medo" é um tremendo suspense. Além do filme,em si, ter sido conduzido de maneira primorosa, o seu enredo é baseado no livro "Paciente 67", de Dennis Lehane. Não sabem de quem se trata? Pois bem, Lehane é um dos escritores norte-americanos de romances policiais mais consagrados dos últimos anos. Seu maior sucesso foi, nada mais, nada menos, que "Sobre Meninos e Lobos" (livro que, simplesmente, gerou o melhor filme de Clint Eastwood depois de "Os Imperdoáveis"). Com uma base dessas e um diretor que ainda continua fenomenal mesmo depois de tantos anos de cinema, "Ilha do Medo" não tinha como dar errado. Após o seu término, é comum ficar pensando sobre o que, de fato, aconteceu. Qual conclusão tirar? Nessa linha tênue entre a sanidade e a realidade, a resposta não é fácil. Talvez, o final do filme seja aquilo que cada um quiser, a depender do grau de percepção que cada um tiver. Em suma: um thriller como há muito não se via.


NOTA: 8,5/10


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