Dica de Filme ("EU, DANIEL BLAKE")

Dica de Filme

Eu, Daniel Blake
2016
Direção: Ken Loach


A HISTÓRIA DE UM HOMEM COMUM, UM CIDADÃO COMUM, DECENTE, EM BUSCA DO BÁSICO: DIGNIDADE

O cinema, às vezes, tem disso: dá um nó na gargante, provoca revolta, externa alguma dilacerante angústia presa no peito, dá voz aos humilhados. Por definição e excelência, é "cinema político", engajado, que pode ser tanto panfletário, quanto sutil, contanto, que seja bem realizado. 

O veterano cineasta Ken Loach é um dos poucos diretores antigos em atividade que ainda fazem da sétima arte uma plataforma de luta, para expressarem as maiores discrepâncias de uma sociedade doente e medíocre, como Constantin Costa-Gavras e Nani Moretti. E, mesmo que os filmes destes não tenham mais o mesmo "furor" ou a mesma "energia" de outrora, suas inquietações continuam dolorosamente pertinentes, só que apresentadas de maneira mais intimista. 

"Eu, Daniel Blake" é isso. Uma produção que desperta crítica, tristeza e indignação, mas, de forma brilhantemente leve e doce (e também muito melancólica).




O personagem que dá título ao longa é um senhor às voltas com a Previdência Social da Inglaterra. Após sofrer um infarte, tenta, de todas as maneiras possíveis e imagináveis entrar no programa de benefícios do estado, mas, a burocracia virá com tudo pra cima dele. 

A primeira sequência do filme é emblemática nesse aspecto. Só escutamos as vozes do protagonista e de uma "profissional de saúde" da instituição que, numa entrevista, aborda Blake de todas as maneiras, mas, nunca indo ao ponto do problema de saúde que o levou a requerer o benefício. E, acreditem: esse será apenas o início de sua via crucis numa luta que parece interminável quando o assunto é exigir apenas os seus direitos como cidadão. 

Durante esse processo, conhece Katie e seus dois filhos pequenos, que estão em situação financeira igualmente difícil, passando a ter uma bonita e genuína amizade entre os quatro.

O roteiro de Paul Laverty, habitual parceiro de Loach nos últimos anos, é ótimo em sua simplicidade ao mesclar aos dramas pessoais de Blake e Katie com uma crítica certeira ao modo como o estado trata as pessoas. 

O que talvez desagrade ao público médio é que a história não apresenta arroubos em relação a um grande clímax ou catarses. Há momentos revoltantes, sim, mas, sem soarem histéricos ou barulhentos (típicos do cinemão norte-americano). O enredo faz dos personagens pessoas comuns reagindo a situações plausíveis. 

Exemplo disso é a cena em que Blake faz um pequeno alvoroço no prédio da Previdência quando os seguranças destratam Katie e os seus filhos. A sequência é econômica, curta e produz o efeito necessário, sem se alongar demais. Já, em outro momento, o personagem principal descobre algo que Katie está fazendo para poder sobreviver, o que o deixe triste e deprimido, no entanto, esse ponto da história é abordado de maneira sóbria e ao mesmo tempo tocante, sem ficar piegas ou melodramática. Tom acertado e no ponto.




Mas, com certeza, o ponto alto do filme é como ele explora bem o quanto os mais marginalizados sofrem num ambiente com pouca ou nenhuma oportunidade. Katie, por exemplo, desempregada, precisando cuidar de duas crianças, e mesmo com a ajuda de Blake em alguns momentos, precisa se submeter à filas intermináveis de bancos de alimentos (numa cena, inclusive, que gera um grande desconforto, e é precisa na abordagem do drama dos personagens). 

Já, Blake vive os dilemas de um estado burocrático, que não cansa de humilhá-lo, com o intuito de fazê-lo desistir dos benefícios sociais aos quais têm direito. São papeis, inscrições via Internet (algo, por sinal, do qual ele não está em um pouco familiarizado), participação "voluntária" de cursos profissionalizantes, busca por emprego, etc, etc, etc. Tudo para fazê-lo desistir. Só que ele não desiste. Até que seu esgotamento físico e mental proporciona o melhor momento do filme, no qual, num pequeno ato de revolta, ele expõe seu sofrimento a um punhado de transeuntes, e estes, representantes da sociedade do espetáculo, aproveitam para tirar selfies com Blake, aplaudí-lo até o ponto de xingar as autoridades, braço armado desse estado que, segundo o protagonista, tira até o nosso autorrespeito.

As atuações, se não são excelentes, pelo menos, estão ótimas para a proposta do filme. Dave Johns nem parece que está estreando no cinema. A sua interpretação para o protagonista da trama é cativante e sincera, sabendo explorar bem os problemas de um homem comum diante de uma situação completamente estressante. Hayley Squires empresta um senso de humanidade muito bonito a Katie, fazendo com que a gente acredite que estamos diante de uma jovem mulher perdida num mundo inóspito, com a incumbência de ainda criar dois filhos pequenos. Uma atuação bem sensível. 

E, para comandar um filme com uma natureza tão singela e forte, nada melhor que o diretor Ken Loach. Fica parecendo que ele não envelheceu nada desde que fez filmaços, como "Kes", em 1969. Aos quase 80 anos, em "Eu, Danil Blake", ele mostra uma mão segura, sóbria, mas, não fria e desprovida de empatia. Ele apenas não usa e abusa de clichês que poderiam desviar a história de seu tema principal, equilibrando muito bem os dramas de Blake e Katie na mesma problemática. Um trabalho na direção com a dignidade inerente ao próprio protagonista do filme.




"Eu, Daniel Blake", pode muito bem ser traduzido como "Nós, Daniel Blake". Nós, que assim, como o protagonista, podemos ser humilhados pelas autoridades e pelo estado, quando o que queremos, no fim das contas é respeito e dignidade como cidadãos. Cidadãos que procuram sobreviver de todas as formas, mas, o que ganham é mais humilhação, mais desrespeito e mais sentimento de revolta. 

Com este pequeno grande filme, Ken Loach conseguiu traduzir bem p sentimento de opressão pelo qual nós, os "comuns", estamos sujeitos numa sociedade que nos exige muito, e nos oferece pouco. Uma sociedade da qual somos descaracterizados como pessoas, passando a sermos números de protocolo em sistemas pra lá de burocráticos. 

Mas uma importante mensagem passada pelo cinema (e, um cinema de ótima qualidade, o que é melhor).


NOTA: 8,5/10


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