Dica de Filme

O Sol é Para Todos
1962
Direção: Robert Mulligan


DRAMA ATEMPORAL SOBRE O RACISMO ABORDA O TEMA DE MANEIRA POUCO CONVENCIONAL, COLOCANDO A VISÃO DAS CRIANÇAS SOBRE O ASSUNTO EM PRIMEIRO PLANO

O universo infantil é realmente fascinante. E, mais fascinante ainda é a possibilidade de termos determinadas abordagens pela ótica, às vezes, nem tão ingênua assim, das crianças. Muitos são os filmes que dão aos pequenos o protagonismo em suas histórias, geralmente, rendendo frutos muito positivos. 

Baseado nesse princípio, uma produção que fala sobre o racismo em plena década de 60 (cuja história se passa exatamente no ano de 1932), quando a segregação racial ainda era algo muito palpável nos EUA, e sob os olhares curiosos de três crianças, isso é, no mínimo, um tratamento muito interessante a uma história que poderia perigar soar panfletária demais. 

Trata-se de "O Sol é Para Todos", baseado no livro "To Kill a Mockingbird", que a escritora Harper Lee havia lançado dois anos antes. E, convenhamos: que bela adaptação!




Antes de mais nada, um recado aos desavisados: o filme demora um pouco a se focar em seu tema principal. No entanto, tudo é proposital, com o intuito de conhecermos bem os personagens, um a um. Quando, então, estamos familiarizados com eles, a história, em si, começa. Mas, desde o começo, e por um bom tempo, somos apresentados aos irmãos Louise e Jem Finch, e o amigo deles, Dill Harris. 

O trio, como qualquer criança que se preze, promove diversas travessuras, e o mais importante: cada um possui uma personalidade bem distinta. Isso, acreditem, fará um diferencial grande durante a narrativa. Paralelo a eles, também vamos conhecendo Atticus Finch, um advogado renomado na região, que também é pai de Louise e Jem. Os seus problemas começam quando é incumbida a ele a tarefa de defender de Tom Robinson, jovem negro acusado de violentar uma garota. 

É óbvio que, pela época em que a história se passa (por volta dos anos 30), o racismo era muito mais latente, e dá pra imaginar o quanto Atticus será hostilizado pela população local, principalmente, pelo pai da suposta vítima. Afinal, ele está defendendo um negro, e isso, para a época, era um absurdo..

Como avisado anteriormente, não esperem que o enredo "entre" diretamente no assunto ao qual ele se propõe logo de cara. Tudo será gradativo. A intenção é envolver o espectador o máximo possível com os personagens, o que pensam, e, principalmente, o que está ao redor deles, e como eles agem diante de acontecimentos inesperados. 

Esse artifício funciona muito bem, pois, quando o tema do racismo realmente aparece na trama, a força narrativa do discurso é muito maior, e o filme não perde em ritmo por causa disso. Melhor ainda: o olhar perplexo das crianças continua a ditar o desenrolar do enredo, tanto é que a cena do tribunal, uma das mais impactantes da produção, é assistida inteiramente por elas, mesmo que o assunto ali tratado seja "de adultos", digamos assim. 

E, é por esse olhar perplexo que Louise, Jem e Dill irão aprender lições sobre tolerância, respeito e integridade, mesmo que tais palavras não fossem usadas aos negros daquela época, tornado alguém como o advogado Atticus uma persona non grata, mesmo que íntegro em sua profissão.




O roteiro forte é muito engenhoso a partir do momento em que começa o tocar em tema principal no momento certo, dando um envolvimento emocional à trama de tal forma que ficamos na dúvida qual o desfecho que a história tomará. 

Porém, uma coisa que o enredo não abandona, de maneira alguma, é a visão das crianças em relação aos acontecimentos, sempre em primeiro plano. Mesmo no último apelo de Atticus aos jurados no tribunal, são elas que enxergam e interpretam os fatos, e nós, consequentemente, é que absorvemos as suas impressões. Isso coloca um certo ar de ingenuidade na história, o que é bastante salutar, pois, evita qualquer precipitação que o espectador tenha, achando que já sabe qual será o desfecho da narrativa. 

Por sinal, o filme, de certa forma, "brinca" com essas expectativas, mexendo com os nossos preconceitos (até o final, é bom dizer), passando não somente uma importante mensagem contra o racismo, mas também, contra o preconceito, de uma maneira geral.

Aqui, as atuações são ótimas, a começar pelo trio mirim, que se sai muito bem, tanto nas partes mais cômicas, quanto naquelas mais dramáticas. Destaque, nesse aspecto, para Mary Badham, que interpreta Louise. Entre os adultos, enormes elogios para Gregory Peck, que faz do advogado Atticus um personagem muito humano, passando uma sincera perplexidade diante da intolerância das pessoas. Merecidamente, ganhou o Oscar por esse papel. 

Brock Peters, que faz o acusado Tom Robinson, aparece pouco, mas, quando surge na tela, atua de forma muito competente, passando bastante verossimilhança ao seu personagem. E, temos até um jovem Robert Duvall, em sua estreia no cinema, cujo personagem será essencial para o desfecho da trama. 

Porém, quem pesa a mão um pouco no filme é o diretor Robert Mulligan, que, às vezes, apela para algo mais piegas e melodramático, o que se torna desnecessário, deviso à força do roteiro e à competência das atuações. Felizmente, ele consegue imprimir um bom ritmo narrativo, e esses momentos mais forçados se dissolvem no ar depois de um tempo.




Acima de tudo, "O Sol é Para Todos" virou, ao longo doas anos, um filme de suma importância para continuarmos a pregar algo em prol do respeito e da tolerância. Isso porque, passadas tantas décadas após sua realização, o racismo continua a ser uma chaga social, mesmo nos EUA, apesar de tantos avanços. 

A cada jovem negro que sofre alguma injustiça (justamente, por ser negro), "O Sol é Para Todos" ecoa como um alerta de que ainda estamos longe de um ambiente ideal de combate a todo e qualquer preconceito. Porém, como a arte quase sempre proporciona reflexões melhores do que qualquer outra forma de comunicação, este filme continua (infelizmente) atual e necessário. 

Que, um dia, ele possa ser lembrado "apenas" como o ótimo filme que é, e nada mais.


NOTA: 8/10


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