Dica de Documentário

A Filha da Índia
2014
Direção: Leslee Udwin


Há algum tempo, um escabroso caso de estupro coletivo tomou conta do inconsciente coletivo brasileiro. Como se não bastasse o ato em si ser grotesco, que evidencia a mais alta podridão humana, uma das coisas que chamou a atenção para o caso foi o fato da vítima ter sofrido ataques e agressões (principalmente, nas redes sociais). Frases feitas como "Foi estuprada porque mereceu" ou "Se estivesse na Igreja, não teria acontecido" se tornaram comuns. Tanto homens quanto (inacreditavelmente) mulheres culparam a menina pelo ocorrido. E, eis que, com isso, chegamos ao ótimo documentário "A Filha da Índia".

A produção, feita pela BBC, trata, especificamente, a respeito do horrendo estupro coletivo ocorrido em Nova Delhi, na Índia, em 2012, aonde, após ter sofrido toda a sorte de abusos, uma mulher é abandona em via pública, e morre dias depois no hospital. O documentário é bem fiel ao fazer a reconstituição do crime, além de mostrar as consequências disso, já que, depois dessa barbaridade, a população civil (em especial, as mulheres) passaram a protestar fortemente pelos direitos delas, ainda vista como inferiores pela cultura local.




O material mescla bem todos os depoimentos, inclusive, de um dos estupradores, que choca ao, naturalmente, dizer que a mulher tem tanta culpa no estupro quanto o homem, e que uma mulher decente não sai de casa sozinha e à noite. Notem, pois, que é um absurdo alguém ter esse tipo de pensamento, mas, é justamente o que se ouviu no caso da menina no Rio de Janeiro há alguns meses. As mesmas justificativas que "ocasionam" um abuso sendo ditas tanto por gente dita "de bem", quanto por um homem que participou do abuso, espancamento e destruição (literal) do corpo de uma mulher. Quando se percebe isso, dificilmente, nega-se que haja uma "cultura do estupro" no mundo.

O Documentário também é positivo por não dar respostas fáceis a assuntos complexos, nem se deixar levar pelo sentimentalismo, apesar do tema ser, de fato, chocante e incômodo. Mesmo não tentando "justificar" um ato de tamanha violência, a diretora Leslee Udwin é muito feliz ao expôr as condições miseráveis e sub-humanas de onde os estupradores vieram, e de como a cultura de inferiorização da mulher também contribui para que tais crimes sejam feitos. É desesperador ver a esposa de um dos estupradores quase em pratos pela possibilidade do marido ser condenado à pena de morte, e corroborando com essa cultura de submissão da figura feminina.




Depoimentos de diversos especialistas sobre o tema dão alguma luz pra tentarmos entender a questão, ao invés de apenas chamarmos esses estupradores de "monstros" e pedirmos a morte deles. E, é justamente isso o que falta em debates sobre temas pesados e intensos de paixões: reflexão generalizada para entendermos pequenos detalhes, evitando que caiamos na armadilha dos jargões e das frases de efeito, tão típicas dos moralistas de plantão. Completa a estrutura da produção a participação inflamada da população civil, cansada de uma sociedade que deixa, impunemente, que casos bárbaros como esse ocorram.

Mas, verdadeiramente, o impacto maior de "A Filha da Índia" é acompanhar as falas dos estupradores, e de tantos outros ao redor deles, tentando, de alguma maneira, "justificar" o ocorrido. Dá a entender que não é só machismo, puro e simples. É algo mais profundo, cujo cerne está em diversos fatores, como o ódio à mulher devido à sua crescente emancipação (a garota estuprada coletivamente trabalhava fora e estudava pra ser médica), entre outras questões. Não esperem, portanto, um linchamento moral dos acusados, e sim, um convite ao debate a respeito de direitos igualitários, tolerância, etc.




É bom que se diga que o documentário foi proibido de ser exibido na Índia, pois, de acordo com o tribunal do país, ele tem trechos que "aparecem para incentivar e incitar a violência contra as mulheres", devido a um dos estupradores entrevistado culpar a vítima pelo estupro e ter feito outros comentários controversos. Em suma: mesmo depois de um acontecimento tão brutal, que evidenciou de forma tão clara que o problema está na sociedade e na cultura que ela propaga, as autoridades indianas parecem não ter aprendido a lição. E, pelo visto, nem nós, do lado de cá do Ocidente, aonde insistimos em culpabilizar a vítima de estupro. Todos, enfim, estão surdos.


NOTA: 9/10

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