Dica de Filme

Madame Satã
2002
Direção: Karim Aïnouz


Os marginalizados. Esses, sempre ficam no imaginário popular, como uma espécie de entidade a pairar em nossa imaginação, às vezes, lembrando que podemos ir um pouco além. Madame Satã, negro, gay, pobre, malandro, nunca se curvou às exigências da sociedade. Como ele mesmo dizia, "tinha um bicho dentro dele, que não deixava que se endireitasse!" Viveu como quis, e pagou o preço. Ponto, e sem julgamentos. Sem julgamentos, também, é o que nos proporciona essa visceral cinebiografia, dirigida com vigor, e interpretada de forma monstruosa.

Pra começo de conversa, sem retoques. Tudo é seco e sujo, dos cenários aos diálogos. Nada é necessariamente bonito, mas, tudo é muito humano, muito próximo à nossa realidade. À realidade dos excluídos, dos demonizados, dos "inimigos" de sempre. O filme vai abordando de maneira contundente a trajetória nada convencional de João Francisco dos Santos (posteriormente, conhecido como Madame Satã). Lembremos que estamos falando da década de 30, aonde o preconceito a todas as categorias que Madame Satã se enquadrava era latente, com bastante perseguição das autoridades, inclusive.




E, todo esse contexto é muito bem tratado no roteiro, com os acontecimentos ocorrendo de maneira espontânea. Da prisão do protagonista, ao seus amores, passando pela sua eterna luta consigo, e chegando até p auge de sua carreira, com a consagração em diversas apresentações no carnaval, vamos acompanhando tudo muito "de perto". A câmera de Karim é muito certeira ao enquadrar ângulos muito próximos aos personagens, como se quase pudéssemos tocá-los. Um nível de intimismo que deixa o envolvimento de espectador ainda mais real (basta conferir a estonteante cena de apresentação do protagonista no bar de um amigo, em que nos sentimos naquele ambiente, literalmente).

No entanto, não esperem qualquer forma de empatia com Madame Satã. O personagem não é carismático, apesar de ter uma incrível vivacidade. Muitas vezes, ele é rude e até opressor com seus melhores amigos, mas, até isso se torna um tanto "compreensível" pelo modo como ele sempre foi tratado: um verdadeiro animal. Apesar de tanta brutalidade, há espaço para paixões, mesmo que de um jeito bruto, mas, com um certo amor; um amor autêntico. E, chegamos, é verdade, a termos muita piedade do personagem, e sua condição de marginalizado. Uma condição, não necessariamente, fruto do meio, mas, o ambiente sendo um fator importante para definir quem é Madame Satã.




Evitando qualquer forma de julgamento de valor, o roteiro desenvolve um protagonista cheio de defeito, mas também com qualidades muito perceptíveis. Ajuda muito a dupla de coadjuvantes Laurita e Tabu, amigos inseparáveis de Madame Satã, que mesmo mal-tratados muitas vezes pelo colega, não o abandonam, e até tentam ajudá-lo a se "endireitar". Mesmo assim, o ambiente (sempre ele) prova o quanto as pessoas podem ser escabrosas, e o personagem principal vai ter que lutar (e, muito) por sua dignidade.

O filme, em si, é correto em diversos aspectos. Não há cenas mal-construídas, situações constrangedoras ou algum outro maneirismo que possa atrapalhar a experiência de assistí-lo. Da (óbvia) trilha sonora ]repleta de sambas e marchinhas de carnaval, à crueza técnica, tudo é bem cuidado, sem desleixo. No campo das atuações, todos estão muito convincentes, mas, não há como negar que "Madame Satã" é de Lázaro Ramos. Sua interpretação é de magistral entrega ao personagem, dos trejeitos, à forma de falar, até pequenos detalhes, como um olhar, por exemplo. Melhor trabalho de Lázaro no cinema, sem dúvida.




Como cinema, "Madame Satã" é um filme que "transpira" (não há outra definição m,ais precisa). Ele é um ente vivo, que como seu protagonista, pulsa, ama, odeia, bate, vive. Sentí-lo e não apenas assistí-lo seria o ideal. Pra quem ainda possui qualquer insensato preconceito em relação ao cinema brasileiro, "Madame Satã" prova (entre tantos outros) que o cinema nacional é de qualidade, mas, sem precisar de muita coisa. Basta um bom roteiro, uma boa direção e boas atuações, além de muito "entrega" de todos. O resto é "cineminha" pra gringo ver.


NOTA: 9/10

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