Dica de Filme

Fargo
1996
Direção: Joel Coen


Os anos 90 foram produtivos em se tratando de cinema autoral. Começou com Tarantino e o seminal "Cães de Aluguel", passando por David Fincher e tantos outros. Melhor de tudo é que boa parte destes que surgiram na época tinham estilos bem próprios, e, ainda hoje, continuam realizando ótimas obras. Um bom exemplo disso são os irmãos Joel e Ethan Coen, que, com seus filmes ao mesmo tempo excêntricos e críticos, foram construindo ao legião de fãs ao longo dos anos, culminando com o Oscar pelo excelente "Onde os Fracos não têm Vez". Na realidade, eles começaram sua carreira nos anos 80, com o interessante "Gosto de Sangue", mas, o culto aos irmãos Coen só veio com "Fargo", 12 anos depois. E, merecidamente, diga-se.

O sub-título que a produção recebeu no Brasil ("Uma Comédia de Erros") funciona bem para descrever um pouco da experiência que é assistir "Fargo": risos nervosos vindos através de situações absurdas e, não raro, violentas. No entanto, o filme, ao contrário do que possa parecer, não ´s só "estilo", o que o confinaria numa aura intransponível de "cult", e somente isso. O roteiro dos Coen tem mais a oferecer do que aparenta, principalmente, quando questiona, às vezes, de maneira sutil, e em outras, escancaradamente, o estilo de vida do americano médio, em especial, a sua obsessão pelo sucesso a qualquer custo, seja profissional, seja através de outros, digamos, "meios".




E, os meios para se conseguir os objetivos (diga-se: dinheiro) podem ser desde armar o sequestro da própria esposa, até matar o máximo possível de pessoas pelo caminho. A primeira alternativa é escolhida por Jerry Lundegaard, um gerente de vendas de uma concessionária, que se sente um zero à esquerda, um fracassado, que depende financeiramente do seu sogro (no caso, o seu chefe também). Para conseguir uma quantia em dinheiro a fim de realizar um grande investimento ele tem a brilhante ideia de mandarem sequestrar a sua esposa, e ficar com o resgate. Já a parte violenta, daqueles que precisam sujar as mãos (literalmente) recai sobre Carl Showalter e Gaear Grimsrud, dois bandidos um tanto atrapalhados, com personalidades bem distintas: enquanto um é articulado e metido a esperto, o outro não passa de um puro psicopata, frio e insano.

É claro que alguma coisa (ou, muitas coisas, na realidade) acabam dando errado, e o que era para ser um bem sucedido golpe, vira um emaranhado de erros, de todos os lados. Tudo, claro, com a boa e velha veia satírica dos Coen. Em qualquer outro filme, esse enredo serviria para uma dessas comédias pastelão, cheias de um humor forçado e bobo, sem nenhuma substância. Aqui, o humor não está, necessariamente, para humor, mas, em situações nonsense que expõem o quão ridícula é a sociedade. Por exemplo, em determinado momento, o sogro de Jerry, mais preocupado com o seu dinheiro do que coma sua filha, resolve ir se encontrar com os sequestradores, disposto a tudo. E, ele, ao longo da trama, é retratado como uma pessoa mesquinha e controladora, mais preocupada como seus negócios do que com a sua família, sempre que pode, humilhando Jerry. As suas ações acabam sendo naturais de acordo com esse tipo  de personalidade, resultando em ótimas críticas do roteiro.




Interessante é a quantidade de personagens bem elaborados ao longo da história, que poderiam soar caricatos em qualquer outro filme, menos aqui. É o que acontece, pra ser mais específico, com a policial Marge Gunderson, que, de início, não parece ser interessante no contexto da história. Ao contrário: aparenta ser incompetente, mais preocupada em ser sociável com os seus colegas de farda do que qualquer outra coisa. As primeiras cena em que ela aparece, apenas falando futilidades com os amigos e o marido e comendo muito reforçam isso. Mas isso, acreditem, é pura enganação do roteiro esperto dos Coen, e Marge vai mostrar ser mais importante para a trama do que se imagina.

Além de tudo, a história é bem amarrada, só pecando pelo excesso de cenas "introdutórias" da personagem Marge, e alguma verborragia deslocada aqui e acolá. Nada que atrapalhe o conjunto, mas, sem isso, o resultado ficaria mais redondo. Mesmo assim, o roteiro aproveita bem as ironias para se focar nas críticas certas, e ainda conseguir mostrar "estilo". Nesse filme, a história é escrita por ambos os irmãos, porém, quem dirige é só Joel Coen, que mostra mão segura na maior parte do tempo, conduzindo tudo com maestria, sem revelar imediatamente os pontos-chaves da trama, e, assim, mantendo o nosso interesse até o final. Destaque-se também as boas atuações, desde o estranho (e, sempre brilhante) Steve Buscemi, até William H. Macy (que faz um Jerry cheio de tiques nervosos) e Frances McDormand (que consegue fazer de Marge uma personagem cativante ao longo da história).




"Fargo" é, sem dúvida, um dos filmes mais emblemáticos do cinema independente dos anos 90. Não é por acaso que gerou uma legião de fãs, ao mesmo tempo foi influência para muitos seguidores que, infelizmente, não possuem o mesmo talento dos Coen. Isso porque não basta pegar uma história "esperta" e requentá-la com muita violência. É preciso que haja uma intenção maior diante de tanto estilo e pose, e, no caso de Joel e Ethan, é alfinetar uma sociedade que mais parece uma grande comédia de erros do que o próprio "Fargo". E, é isto que faz o trabalho deles ser reverenciado até hoje. Nada é por acaso.


NOTA: 8,5/10


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