Dica de Filme

O Apartamento"
2016
Direção: Asghar Farhadi


SEM JULGAMENTOS FÁCEIS, "O APARTAMENTO" PROVOCA O ESPECTADOR A CADA INSTANTE, QUESTIONANDO PRECONCEITOS E VINGANÇAS PESSOAIS

É muito simples fazer um filme com uma história de fácil apelo emocional, com conceitos mastigados para o público, impedindo que este tenha sua própria opinião, isenta de maniqueísmos. Em tempos pasteurizados, onde tudo (eu disse: TUDO!) pode ser embalado e comercializado para consumo rápido, é muito alentador assistir a um cinema que não se desgasta imediatamente após a aparição dos créditos finais. 

"O Apartamento" provoca isso, e, tais sensações só são possíveis graças ao seu exímio realizador: o iraniano Asghar Farhadi. Ele já havia demonstrado seu poder de tocar em assuntos universais, mesmo ficado em sua terra natal, com o ótimo "A Separação". Porém, com "O Apartamento", ele vai um pouco mais além, questionando valores e atitudes que podemos encontrar em lugares tão díspares, como o Irã ou o Brasil. 




As primeiras cenas são de muita tensão: um plano sequência, com vários moradores de um prédio saindo às pressas sob risco de desabamento. A partir daí, vamos acompanhar, especificamente, duas dessas pessoas, em busca de um novo lugar para ficarem: o casal Emad e Rana. Paralelo à vida particular deles, somos apresentados ao trabalho de ambos, que integram uma trupe teatral. 

Essa, por sinal, está eufórica por causa da estreia de uma nova peça, e Emad e Rana interpretam justamente os protagonistas. No entanto, quando ela é agredida em sua nova residência, a vida deles é abalada, e Emad segue tentando buscar o culpado da agressão. Quanto mais ele se empenha em procurar o algoz de sua esposa, mais a relação dos dois vai ficando abalada, e é durante esse processo que o diretor Farhadi solta suas ótimas provocações.

O que temos aqui, num primeiro momento, é uma bem-vinda crítica ao julgamento precipitado que a sociedade faz de determinadas pessoas. A todo momento, a inquilina anterior do apartamento onde Emad e Rana estão morando agora é questionada a respeito de sua "conduta moral". O irônico disso é que Rana e os amigos de Emad não veem pudor nenhum em mexer nos pertences pessoais dessa inquilina, inclusive, expondo seus objetos ao relento e à chuva, sem o mínimo respeito ou compreensão. 

Cabe, nesse momento, o questionamento: quem tem moral para julgam quem? Ao longo da história, esses questionamentos (nada simples) vão sendo o mote do filme, culminando num clímax que eleva bastante o clima de angústia de quem julga e é julgado, de quem perdoa, e não consegue perdoa, do sentimento de vingança e da aceitação da resiliência. 




Interessante notar as atuações de Emad e Rana na peça da qual estão participando, com ambos, muitas vezes, refletindo no teatro as suas próprias angústias pessoas. Essa confusão dos protagonistas entre realidade e ficção demonstra que eles não estão apenas abalados pela agressão que ela sofreu, mas que também vivem uma certa frieza em sua relação. Essa distância entre ambos apenas fica mais acentuada após o que ocorreu. 

Não raro, em muitas ocasiões, são os amigos deles que se mostram mais preocupados com o casal, e, por essa aproximação, são constantes as brigas com esses amigos, que também fazem parte da trupe de teatro. E, novamente, esses conflitos se refletem na peça, fazendo com que Emad se sinta ainda mais compelido em querer encontrar quem agrediu sua esposa naquela fatídica noite.

No entanto, a verdade que tanto Emad procura vai revelar bem mais sobre ele e a esposa, do que do agressor. Essa sequência, por sinal, é um primor de roteiro e direção, pois, mesmo sendo longa, não deixa a história cair na banalidade ou no ridículo, sempre contestando o julgamento do espectador de algo que ele julgava ser verdade, mas, que pode não ser. 

Nesse sentido, a busca desesperada de Emad também revela muito de nós mesmos, como lidamos com certas situações, como condenamos facilmente, sem uma reflexão prévia, como achamos, enfim, que deveríamos fazer algo em determinadas situações. 

O ótimo roteiro, então, mostra algo muito óbvio, mas, que, muitas vezes, ignoramos: a vida, por si, é complexa, existem diversos fatores que podem ou não determinar nossas atitudes, e, acima de tudo, que somos quando entramos em confronto contra nós mesmo, contra os nossos ideias, contra os nossos princípios. 




Após o aclamado "A Separação", o diretor Asghar Farhadi mostra que tem bastante aptidão para o cinema. Sua condução é tão segura, que chega a ser "opressora" a forma como ele envolve o espectador na trama, impossibilitando-o de "sair do filme" até que chegue a sua conclusão (ou, não, visto que "O Apartamento" pode, muito bem, ficar na cabeça de quem assistiu por um longo tempo). 

A soberba direção é amparada por um roteiro primoroso, que não dá espaço para arestas ou conclusões apressadas. As qualidades do filme são completadas com um casal de atores muito competente, Shahab Hosseini e Taraneh Alidoosti, que dão uma intensidade dramática a Emad e Rana impressionante, em muitas cenas, através de pequenos gestos.

"O Apartamento" é um retrato incômodo de nós mesmos. Quando criticamos algum personagem, vem, em seguida, alguma cena que coloca em xeque a nossa percepção das coisas, mostrando a imensa complexidade que rege as relações humanas. Um filme que nos expõe mais do que a seus próprios personagens, que nada mais são do que um reflexo nosso, para o bem e para o mal. 

Após o seu término, ficamos com uma sensação estranha de que acabamos de ser julgados, e esse confronto visceral com as nossas ideias, "olho no olho", poucos filmes recentes tiveram a coragem de fazer. "O Apartamento" não é para tranquilizar absolutamente ninguém, o que o torna uma experiência até desagradável para alguns, mas, necessária para todos. 


NOTA: 9/10



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